sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Descobri um duende no meu jardim


Para Dani Franco, minha duende


Assim como quem já não esperasse mais nada, passo a passo mais desiludido – dentro, no fundo -, e vagasse meio cego e tonto pelas vielas de lixo e merda, sufocado pela decadência exposta em cada esquina da cidade que, de tanta chuva e sol e vento, foi deteriorando-se, rachaduras e limo nas paredes, emoções, ele caminhava disperso em meio aos dias, encarando de frente mas sempre com certo medo o mundo fora da noite da qual ele vinha, estava, para além da solidão que lhe acompanhava.

Assim como quem já perdeu tudo, as mãos vazias de qualquer sentido (dedos amarelos, olhos vermelhos), apenas um incômodo profundo no peito sem explicação para ele, não chegava a ser dor, só incômodo, alimentado fartamente com o vazio dos dias – os mesmos nos quais vivia disperso -, de alguns iguais, do vazio que ele mesmo por tanto tempo (na verdade, não passavam de duas décadas, mas para ele, dentro, eram séculos acumulados, vividos) cuidou e guardou como cuida-se com ternura e guarda-se com carinho um amor (mesmo ele ainda não sabendo o que é o amor!), ele olhava-se no espelho, nu, os pelos eriçados, o pau murcho, aquele ar de tristeza que dizia ser hereditário, e não reconhecia-se, estranhava-se e sentia que estava, ainda, vagando entre ele e ele mesmo, perdido em meio a muito lixo, rachaduras, emoções e merda, como quem vagasse pelas ruas da cidade, e tentava chorar sem conseguir, o engasgo das lágrimas ausentes impedindo-lhe de respirar, de dizer, e desesperava ao descobrir (porque para ele cada descoberta sobre si mesmo era um pequeno desespero) que sem perceber deixou-se ir secando como flor ou fruto, apagando o brilho, como se estivesse num eterno outono, folhas secas no asfalto, de tão exposto ao sol, à chuva, ao vento, sem nunca ou quase nunca regar-se, podar, conversar consigo, com outros iguais.

Assim como quem vem de qualquer lugar muito distante e vai para lugar nenhum desconhecido, sem aperceber-se do perfume de jasmim lá fora no jardim - sem aperceber-se que era um jardim -, insistindo inconscientemente em desconhecer-se, olhos e coração fechados, o corpo já curvado do fardo de ser assim, a alma um pouco pesada de tanto entulho espalhado, poeira e mofo; mágoas, dores, raivas boiando pelo chão alagado de lágrimas e lama, o ralo entupido, diluídas nos risos opacos de bom dia, gestos superficiais de afeto – formalidades cotidianas.

Assim ele caminha noturno pelas ruas escuras, iguais embrulhados em papelões pelas calçadas, ele talvez também encolhido num canto, o vento soprando forte e ruidoso compondo uma música soturna com o farfalhar das mangueiras, uma lua nova iluminando seu rosto triste, ele descendo a passos largos a Carlos Gomes, o incômodo agora identificado como um enjoo no estômago, uma intensa e constante vontade de vomitar sem conseguir, já não se sentindo, estranhamente, tão só como antes, horas atrás, a noite se adensando sobre seu corpo, sem medo: pega a chave verde, abre o portão, sobe a escada, atravessa o corredor, gira a chave vermelha na fechadura da porta, entra, um bafo quente estapeia seu rosto, acende a lâmpada e, de repente.

De repente ele pensa que errou o caminho de volta, entrou na casa de um desconhecido, um pouco assustado com as paredes claras e limpas, o perfume de jasmim pairando pelo ar, então entra em seu quarto e percebe que tudo está em seu lugar porém, ao mesmo tempo, tudo está mudado. Distraído, segue o perfume adocicado de jasmim - não tinha percebido que o outono já passara e o jasmineiro estava florido (pequenas flores brancas reluzindo na noite) -, ainda é noite, mas sentia já a brisa morna do amanhecer, um hematoma no céu em degradé, o sol nascendo dentro dele, aproxima-se da janela e.

E, por mais que não fosse, era assim como que a primeira vez, olha com mais atenção para além da janela, os olhos levemente umidecidos, e, com certo espanto, apesar de toda calma que o tomava, vê no meio do jardim, colorido, sorridente e complacente (e agora percebe que ele também o olha lá de fora), ele olha e vê: um duende.

A tristeza desfaz-se no rosto dele e, subitamente leve, ele então sorri iluminado e vivo e desarma-se contra o amor.

7 comentários:

  1. Não vou dizer "que lindo!" Pois isso é fácil e quase superficial.

    Não, meu (de verdade) querido amigo, o caminho que escolhi não é fácil, nem tão leve, porque olhar para si não é das coisas mais serenas. Mas é delicado e florido, e realmente tem cheiro de jasmim, como os que viste dentro da estrela.

    Obrigada por teres te permitido. Amor é o que nos move, com suas cores e seus gemidos, é sua sua luz em prisma que ilumina nossa estrada de tijolos amarelos. Que bom que você, agora, já sabe qual é o caminho de casa.

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  2. Não estou apto para cantar frescuras a plenos pulmões, por isso, duas coisas:

    - Parabéns! Seus textos são sempre uma viagem a qualquer lugar próximo do lugar nenhum, esquina com lá mesmo, onde a gente nem sabia que queria ir.

    - Tu és um filho duma égua! Porque não me disse que tem um blog antes? Partilhar o que você tem a oferecer é um dever cívico. Será considerado desertor se não fizer atualizações mais periódicas. Caralho!

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  3. Dani,

    sei que ainda vou me dever muito para ti daqui para frente. Sendo assim, obrigado desde já!

    Eraldo, meu querido,

    quanto ao 1° comentário, se não fosse os parabéns, entenderia que não gostaste do que escrevi! rs

    Em relação ao 2°, sou displicente mesmo quanto a este blog, ainda não me sinto muito à vontade, mas prometo me esforçar mais, deixar de ser preguiçoso e fazer postagens frequentemente.

    P.S: acho que já te disse isso, mas é sempre bom reforçar: és um ser humano liiindo (assim com três is mesmo, fresco!) e por isso gosto tanto de ti e de tuas paulinisses!

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  4. Glaidson (risos), meu filho adotivo... já disse que sou fã do teu escritor interior.

    Todos nós precisamos encontrar o nosso duende, ou os vários duendes ao longo do caminho.

    Coincidência ou não, suas palavras sempre vem de encontro com o meu momento, me acalentam, me fazem perceber que não sou a única e não entender o que é o amor e enxergá-lo ao meu redor.

    Obrigada por Deus ter te colocado no meu caminho...será vc um dos meus duendes???

    T.Amo amigo!

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  5. Eu acredito em duende. Depois desse texto então...Ai que linnnndo, Gleidson!!!
    Dani, não é nada superficial dizer que lindo. Pq vindo de vc, amiga, e com esse texto lindo, sim e sincero....
    Nossa duende, Gleidson..de todos nós.
    yorranna

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  6. Ai Querol, que liiindo! (parafraseando Dani Franco! rs)

    é sempre bom saber que o que escrevo faz algum sentido fora de mim!

    Quanto ao amor... enfim, é sempre complicado mesmo!

    Também agradeço muuuito à Deus por te ter colocado no meu caminho e, sempre soube, és um dos meus duendes!

    Também te amo muuuito, minha mãezinha, e torço sempre por nossa felicidade!

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  7. Yo,

    obrigado pelo elogio ao texto, vindo de ti isso me vale uns 500% a mais!
    E aproveitando essa minha fase de moço bonzinho, divido minha duende contigo!

    Te amo, amiga.

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