quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Desencontro

Não era Paris, muito menos um filme de Bertolucci. Encontraram-se perdidos em uma outra realidade, as almas emaranhadas nas teias do vazio, os corpos cansados em meio a tantos sem sonhos. Suas vozes, pedaços alados de si mesmos, adejavam entre o ronco dos motores e o grito das buzinas, a aorta de Belém pulsando ali, entupida de ferro e carne. A Almirante transpirava, o odor quente da sua pele impregnando o ar, sufocando as vidas – óperas de tédio regidas pelo caos. Desconhecidos, eles caminhavam, palavras explodindo silêncios, minadas de solidão. O dia dava adeus à luz, as mangueiras carregadas de melancolia. Aos poucos, o desejo tornava-se tão concreto quanto as ruas pelas quais caminhavam.

Olharam-se rapidamente, a magreza de um em vermelho e jeans, a barba do outro sempre por fazer. Conversaram sobre tudo, menos sobre o nada que apodrecia e começava a feder dentro dos dois. Sabiam porque estavam ali, mas não adivinharam onde cada um queria chegar, o lixo amontoado nas esquinas, emoções espalhadas pelo peito. Mecanicamente, revolviam pequenas alegrias, os dejetos de suas vidas, escalavam os andaimes de suas esperanças, rebocavam de certezas as construções em tijolo cru de seus sonhos. Esqueceram seus nomes, o minuto seguinte prenhe de mistério. Havia algo de irreversível naquele encontro, pensaram juntos, mas apenas em um a dor foi verdadeira.

Chegaram à casa, sem chegar a lugar nenhum. Inconscientemente, mantiveram-se na superfície, seguros longe do inferno um do outro, protegidos contra si mesmos. Olharam-se de novo, agora a luz amarela pintando sombras em seus rostos, o desejo se escondendo atrás dos olhos. Ele, sentido-se estrangeiro, emancipava Marabá, desfiando seus dias de lama em Belém. O outro, estrangeiro nele mesmo, sorria, calava, ouvia, esperava. Não perceberam o calor, os demônios, mas estavam no inferno, o fogo consumindo os egos, pulverizando os pudores. Aos poucos entenderam: eram dois homens, isolados do mundo lá fora, vagando entre a brutalidade e a delicadeza de seus corpos, de suas emoções. E, sem querer, reconheceram-se um pouco um no outro, sem dor ou espanto, mas com a certeza de que talvez não se vissem mais, o labirinto da vida os separando.

Hipnotizados pela deusa de voz de jazz e blues, subiram ao paraíso, a escada gemendo sem nenhum prazer. Lá, sentiram-se mais próximos, o desejo cavalgando no ar, a música ritmando seus pensamentos. E então, as palavras libertaram-se das bocas, nuas, impondo cores quentes à palidez das paredes, vida ao corpo morto dos livros, das camas, da TV. Por um segundo, viram um anjo voando pelo quarto, em um bater de asas vermelho, o corpo seminu. Calaram-se. Já haviam se perdido, entenderam, o silêncio rindo dos dois, o desejo encolhido num canto do quarto, dentro deles.

Tentou sair dali, do lugar nenhum onde estavam, mostrou Caio para ele, as letras encharcadas de poesia, seu mundo posto em carne viva. Ele leu e não conseguiu digerir, o sabor em sua boca lhe causando náuseas. Não adiantou o outro dizer que aqueles morangos eram obra-prima, ele os vomitou como que enjoado pelo mofo. Aquela beleza não lhe pertencia, percebeu.
Quero foder contigo, ele disse, as palavras inseguras, agarradas à garganta dele. E mal elas se despiram, o outro já estava nu, a alma sem roupa havia tempo. Olhou para ele, os pelos perdidos pelo abdômen, o pau de macho adulto no corpo de menino: a boca transbordou um rio. Aproximou-se, o cheiro quente de pica estapeando seu rosto.

Por um momento, quis que realmente fosse um homem que estivesse ali, o pau grosso enfiado em seu cu, a vontade de nunca mais sentir-se sozinho. Exploraram a geografia do quarto, de suas fantasias, juntos talvez pela última vez, um dentro do outro, o amor longe de ambos. Não haverá nós dois depois daqui, pensou, e gemeu uma dor profunda, esquecida do prazer. Queria mais e teve, todo, rápido, doce, de repente, fundo. Desejou o outro sempre ali: dentro, mas além de seu intestino, mergulhado em sua alma. Sem querer, pressentiu o fim, como num filme. Uma lágrima escorregou de seus olhos, o sol escorregando do céu.

Amar seria fácil demais, não houvesse o abismo entre o pau de um e o coração do outro. Tinha de ir, de voltar. Marabá o esperava, as vidas de ilusão sem cinema, o cenário das ruas sem teatro. Não pertencia àquele clima chuvoso, ao caos do asfalto, à ninguém. Já havia perdido tempo demais com ele, transado demais com outros e nada mais o faria ficar. Ainda ajoelhado, o outro pediu, mas o anjo havia desaparecido.Desceu, a escada anunciando cada um de seus passos. Só, o outro o ouvia abrir o chuveiro, a água compondo uma canção de despedida em seu corpo. O ocaso o olhava, ali sentado, algo estranho dentro do peito. Não notou antes, mas agora via o sangue coagulando em seus pelos. Estava ferido, pensou, e nu cambaleou até a varanda, o purgatório. Viu seu rosto em close-up, o olhar brando acariciando Belém, úmido de saudade. Observou a cidade, devagar, o tédio dos edifícios, a solidão das casas antigas, a arquitetura triste das árvores. O dia estava morrendo, sorriu, ele também. A cidade não era Paris, nem eles personagens de Bertolucci, pensou.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Do que te importa isto?

Hein? Por que tu queres saber quem eu sou? O que te importa? Por que vens me procurar agora, só agora? Não, não precisas ir embora, eu falo (a mão direita semi-fechada, leva-a até o nariz e respira fundo. Olha para o nada, sorri): eu faço malabarismos nas esquinas e sinais com minhas emoções, mágoas, medos. Tento ganhar um trocado de compaixão, compreensão, um sorriso de afeto que me aqueça. Já não tenho nada assim maltrapilho de sonhos, fedendo a esperanças mortas, o corpo magro coberto pela sujeira das desilusões. Só tenho fome de carinho, amor eu acho, tenho fome da companhia de alguém que me ouça, me entenda, que me ajude a compreender esse sem sentido dentro de mim, segure a minha mão e me guie por esses caminhos obscuros tão meus mas, ao mesmo tempo, desconhecidos, estranhos. Tenho fome de um colo que me embale e me ajude a esquecer esta dor cotidiana de estar vivo – seja lá o que isso signifique, se é que significa alguma coisa! -, de existir tão grande aqui dentro e, fora, me perder em palavras banais, gestos descompassados que, no fundo, sempre no fundo, dizem muita coisa de mim mesmo sem conseguir dizer nada, nestas gargalhadas coloridas e descontroladas que escondem perfeitamente a paisagem cinza opaca que trago no peito há tempos e não sei dizer ao certo por quê (de novo a mão no nariz, a respiração funda, o nada, o sorriso).

Sei lá, não lembro. Não, não adianta insistir. Não me pergunte como eu cheguei aqui porque eu não sei explicar. Não sei como vim parar aqui nesta calçada nem como vou parar nas outras, ninguém sabe. Os outros também não sabem como vieram, simplesmente chegaram e ficaram. Do que te importa isto? Não sei como cheguei aqui, não sei porque estou seminu e cheirando cola para tentar esquecer destas fomes que te falei há pouco. Não sei como vim parar entre tantos saltos-altos, meias-calças, sapatos sociais, ternos, blazers, maquiagens, chapinhas, plásticas, caras lisas de barbas bem feitas, entre estas carnes brancas que, de tão perfumadas, fedem à desprezo esnobismo egoísmo assim tudo junto, de uma só vez. Estas carnes malhadas e protegidas contra o sol que, bem lá no fundo onde elas nunca se deram ou darão o trabalho de chegar, fedem muito mais do que eu – eu que até já esqueci a sensação da água acariciando a minha pele, agora mais escura de tanto sol, o mesmo do qual elas estão protegidas, encrostada desta lama que eu visto por baixo do meu short velho e esfarrapado. Carnes brancas que mesmo assim de longe, quando se desviam do meu olhar creio que meio vazio, um pouco sem vida de anestesia, liga, viagem, tristeza, eu sei que são tão frias quanto as noites que passo aqui, entre meus iguais, irmãos, pais, deitado sobre os jornais de mentiras que tu todo dia escreves, embrulhado em papelões de fantasias perdidas, alegrias esquecidas por tantas baforadas de cola...( os mesmos gestos e reações) Me dá um real aí tio?

Estás vendo estes dentes claros de mastigar bons alimentos, nestes sorrisos falsos de bocas politicamente corretas? (aponta com um dedo ferido, a unha grande preta de sujo por baixo) são tão diferentes dos meus cariados da falta do que comer, doloridos de morderem nada todos os dias. Mas eu sei que estas bocas cheias de bondade ao falar são mais podres do que estes bueiros aqui ó e no interior dos seres que têm estas bocas há tantos ratos e baratas e lixo e lama quanto dentro destes esgotos e estes seres me enjoam mais o estômago do que os bueiros. O que é, nunca me viu? Sua velha enrugada de avareza. (dá três baforadas seguidas) Queres experimentar tio?

(gargalha descontroladamente) Não consigo não achar graça de quem tem medo da minha desgraça, quem finge que não vê minha felicidade roubada, quem nega a existência desse vazio que eu sou – que tenho dentro, estou cheio – porque todos vocês têm um igual ao meu, têm um eu dentro de cada um de vocês, inclusive tu aí, que fica me perguntando estas coisas chatas, enchendo meu saco com esta cara de pena, me olhando como se fosse me ajudar mas, no fundo – bem lá no fundo onde tu tens um escuro que nem o meu, e tu és igual a mim, todo mundo é – não vai fazer nada, porque vais me esquecer na próxima curva de uma puta, entre as palavras vendidas que escreveres amanhã, no próximo copo da tua cerveja sagrada de todo fim de semana, no primeiro pega do primeiro cigarrinho de maconha que tu fumares lá na República com teus amiguinhos de preto metidos a tristes e rebeldes, ou então quando sentares na tua poltrona preferida num desses cineminhas alternativos que tu gostas de freqüentar nesta cidade de merda quente suja fedorenta. Não precisa te explicares, nem tentar esconder teu constrangimento, é sempre assim, já estou acostumado. Do que me importa saber se vou estar amanhã nas páginas de um destes jornais do caralho, para mim eles só servem para forrar o chão e limpar meu cu depois que eu cago, só para isso (a mão, o nariz, olhos revirados, a alegria repentina e calma).

Não, não sei quando eu nasci, vivo o tempo, só isso, não preciso contar ele como tu e todo o resto, porque o tempo não significa nada para mim. Não, não lembro quantos anos eu tenho, mas acho que mesmo assim sujo jogado drogado e esquecido, acho que eu ainda sou uma criança.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Descobri um duende no meu jardim


Para Dani Franco, minha duende


Assim como quem já não esperasse mais nada, passo a passo mais desiludido – dentro, no fundo -, e vagasse meio cego e tonto pelas vielas de lixo e merda, sufocado pela decadência exposta em cada esquina da cidade que, de tanta chuva e sol e vento, foi deteriorando-se, rachaduras e limo nas paredes, emoções, ele caminhava disperso em meio aos dias, encarando de frente mas sempre com certo medo o mundo fora da noite da qual ele vinha, estava, para além da solidão que lhe acompanhava.

Assim como quem já perdeu tudo, as mãos vazias de qualquer sentido (dedos amarelos, olhos vermelhos), apenas um incômodo profundo no peito sem explicação para ele, não chegava a ser dor, só incômodo, alimentado fartamente com o vazio dos dias – os mesmos nos quais vivia disperso -, de alguns iguais, do vazio que ele mesmo por tanto tempo (na verdade, não passavam de duas décadas, mas para ele, dentro, eram séculos acumulados, vividos) cuidou e guardou como cuida-se com ternura e guarda-se com carinho um amor (mesmo ele ainda não sabendo o que é o amor!), ele olhava-se no espelho, nu, os pelos eriçados, o pau murcho, aquele ar de tristeza que dizia ser hereditário, e não reconhecia-se, estranhava-se e sentia que estava, ainda, vagando entre ele e ele mesmo, perdido em meio a muito lixo, rachaduras, emoções e merda, como quem vagasse pelas ruas da cidade, e tentava chorar sem conseguir, o engasgo das lágrimas ausentes impedindo-lhe de respirar, de dizer, e desesperava ao descobrir (porque para ele cada descoberta sobre si mesmo era um pequeno desespero) que sem perceber deixou-se ir secando como flor ou fruto, apagando o brilho, como se estivesse num eterno outono, folhas secas no asfalto, de tão exposto ao sol, à chuva, ao vento, sem nunca ou quase nunca regar-se, podar, conversar consigo, com outros iguais.

Assim como quem vem de qualquer lugar muito distante e vai para lugar nenhum desconhecido, sem aperceber-se do perfume de jasmim lá fora no jardim - sem aperceber-se que era um jardim -, insistindo inconscientemente em desconhecer-se, olhos e coração fechados, o corpo já curvado do fardo de ser assim, a alma um pouco pesada de tanto entulho espalhado, poeira e mofo; mágoas, dores, raivas boiando pelo chão alagado de lágrimas e lama, o ralo entupido, diluídas nos risos opacos de bom dia, gestos superficiais de afeto – formalidades cotidianas.

Assim ele caminha noturno pelas ruas escuras, iguais embrulhados em papelões pelas calçadas, ele talvez também encolhido num canto, o vento soprando forte e ruidoso compondo uma música soturna com o farfalhar das mangueiras, uma lua nova iluminando seu rosto triste, ele descendo a passos largos a Carlos Gomes, o incômodo agora identificado como um enjoo no estômago, uma intensa e constante vontade de vomitar sem conseguir, já não se sentindo, estranhamente, tão só como antes, horas atrás, a noite se adensando sobre seu corpo, sem medo: pega a chave verde, abre o portão, sobe a escada, atravessa o corredor, gira a chave vermelha na fechadura da porta, entra, um bafo quente estapeia seu rosto, acende a lâmpada e, de repente.

De repente ele pensa que errou o caminho de volta, entrou na casa de um desconhecido, um pouco assustado com as paredes claras e limpas, o perfume de jasmim pairando pelo ar, então entra em seu quarto e percebe que tudo está em seu lugar porém, ao mesmo tempo, tudo está mudado. Distraído, segue o perfume adocicado de jasmim - não tinha percebido que o outono já passara e o jasmineiro estava florido (pequenas flores brancas reluzindo na noite) -, ainda é noite, mas sentia já a brisa morna do amanhecer, um hematoma no céu em degradé, o sol nascendo dentro dele, aproxima-se da janela e.

E, por mais que não fosse, era assim como que a primeira vez, olha com mais atenção para além da janela, os olhos levemente umidecidos, e, com certo espanto, apesar de toda calma que o tomava, vê no meio do jardim, colorido, sorridente e complacente (e agora percebe que ele também o olha lá de fora), ele olha e vê: um duende.

A tristeza desfaz-se no rosto dele e, subitamente leve, ele então sorri iluminado e vivo e desarma-se contra o amor.